1º Atividade da Xênia

sábado, 13 de março de 2010

A parábola do cuscuz

A parábola do cuscuz
José Florêncio Rodrigues

Se você é nordestino, certamente sabe o que é um cuscuz. Para quem não é, aí vai uma descrição: cuscuz é um bolo de fubá de milho, cozido no vapor, podendo ser servido seco ou ensopado com leite de coco.
Pois bem Como bom nordestino, quis aprender a preparar um CUSCUZ, para poder servi-Ia no café da manhã em minha casa nas ocasiões em que me tocasse desempenhar essa tarefa. Falei, então, com D. Maria Vieira, nossa cozinheira já por 26 anos, pedindo-lhe que me ensinasse a preparar um cuscuz. "Não tem nenhum mistério", disse-me ela. "O senhor pega o fubá, coloca um pouco de sal, molha, esfrega bem e coloca na cuscuzeira: logo está pronto". "Muito fácil", pensei comigo mesmo.
As férias de D. Maria Vieira foram a ocasião propícia para minha iniciação no ato de preparar um cuscuz. Na cozinha, tomei o fubá, o sal, misturei-os, coloquei água, pus na cuscuzeira e, ao cabo de uns minutos, levei a cuscuzeira à mesa.
Sentados à mesa do café da manhã, minha esposa e filhos aguardavam com expectativa desconfiada o produto do meu talento culinário.
Ao retirar o cuscuz da cuscuzeira, algo inesperado aconteceu. O cuscuz implodiu. Literalmente. Como se fosse uma farofa'. Minha esposa, mais experiente do que eu nas lides culinárias, diagnosticou de pronto: pouca água.
Posso não ser brilhante, mas sou persistente. Uma semana depois, saio para outra aventura de confeccionar um cuscuz. Se o problema com o outro havia sido pouca água, corrigi-Io-ia facilmente. Mesmos ingredientes, mais água, cuscuzeira. Retirado o cuscuz, apresentou-se aos meus olhos uma entidade monolítica, amarela. A analogia mais próxima que encontrei para "a coisa" foi o arroz servido nos restaurantes universitários, o qual recebe dos alunos a alcunha de "unidos venceremos", A platéia doméstica celebrou o segundo fracasso com gozações de todo calibre. Não me dei por vencido, entretanto.
Perguntei a uma das serventes da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, onde eu trabalhava, se ela sabia fazer cuscuz. D. Maria Jesuíno - assim ela se chama - respondeu de pronto que sim e foi logo dizendo que era fácil. Pegava-se fubá, colocava sal... Interrompi-a antes de chegar ao fim da receita, Indaguei de D. Maria, "a senhora faz um cuscuz para eu ver;" Ela olhou-me meio inquisitiva e disse: "Faço, sim. Aqui na copa da Faculdade tem um fogão. O Sr. traga fubá, sal, um pouco de polvilho e margarina, além da cuscuzeira". Pensei comigo: Aí estão alguns ingredientes que não estavam na lista de D. Maria Vieira.
No dia seguinte, hora do almoço, fomos, D. Maria Jesuíno e eu, para a copa. Prestei atenção a tudo o que ela"fazia. O ritual começava com água posta a ferver. Em seguida, ela mediu 2 xícaras de fubá, 1 colher •de sopa de polvilho e uma colher de chá de sal e misturou-os bem. Acrescentou, a seguir, 1 xícara de água e foi borrifando a massa ao tempo em que a esfregava entre as mãos. Finda esta fase, D. Maria Jesuíno testou a aderência da massa pegando um pequeno bolo e o apertando. Estava consistente. Ela observou: "está no ponto", Nesse momento, a água já fervendo, D. Maria colocou pouco mais de 2 xícaras de 'água na parte de baixo da cuscuzeira, pôs o ralo, e sobre ele a massa, compactando-a levemente, Marquei a hora quando a cuscuzeira foi para o fogo. Ao cabo de 20 minutos, D. Maria disse: "está bom". Retirou a tampa da" cuscuzeira, tomou uma faca, introduzindo-a na massa; ao retirar a faca, esta estava enxuta. Ao final, D. Maria Jesuíno desligou o fogo, espalhou margarina por sobre o cuscuz, mantendo a cuscuzeira tampada por alguns minutos. Ao provar aquele cuscuz, tive a certeza de que estava diante de um cuscuz Prêmio Nobel. Restava, entretanto, a questão: saberia eu fazer um cuscuz idêntico?
Dois dias depois fui para a cozinha cedo determinado a fazer um cuscuz igual ao de D. Maria Jesuíno. Tomei os ingredientes nas mesmas medidas que ela usou: procedimentos e tempo também, tudo igual. Retirei o cuscuz da cuscuzeira e levei-o para a mesa. Não houve comentários. Apenas o cuscuz foi comido totalmente. Estava provado que, mantidas as mesmas condições, alguém poderia ser bem-sucedido como eu fui - em preparar um cuscuz.
A história do cuscuz é, em realidade, uma alegoria sobre ação bem mais complexa: a de ensinar. Como ocorreu com minha primeira experiência em preparar um cuscuz, ensinar é algo que muitos de nós nos metemos a fazer despreparados, às vezes até compelidos por circunstâncias estranhas à nossa vontade. Existe um folclore, segundo o qual ensinar é fácil, que todos temos um pouco de professor. Ainda outro folclore, segundo o qual "professor nasce feito". Pior ainda é a crença de que, se um profissional fracassa em sua profissão, pode sempre confiar na rede de proteção, ou seja, ser professor. Não é de admirar que, dadas essas crenças, não poucos vão para a sala-de-aula e naufragam.
Como professor de Didática e Metodologia de Ensino Superior, estava cônscio dessas crenças. Nos anos iniciais da minha carreira, procurei ensinar os meus alunos a prepararem cuscuz (entenda-se "ensinar") no estilo da D. Maria Vieira. Utilizando uma bibliografia convencional, ensinava-Ihes a formular objetivos, planos-de-aula, etc. Em 1985, dei-me conta, mediante pesquisa coordenada por uma equipe de pesquisadores da PUC do Rio de Janeiro (texto publicado em Tecnologia Educacional, ano XIII, n. 59), de que a maior parte dos programas de cursos de Didática, ministrados no Rio de Janeiro, não utilizava dados de pesquisa para substanciar o seu ensino. Concluí que, ensinar Didática dessa maneira, resultaria em deixar meus alunos mais ou menos na situação em que me encontrei, ao tentar fazer meu primeiro cuscuz. Poderia dar certo, poderia não dar, como, de fato, não deu. Era preciso mudar a orientação do ensino da Didática e Metodologia do Ensino Superior, trazendo dados da pesquisa que respaldassem a prática do Ensino.
Essa mudança levou-me a algumas indagações preliminares. Que fatores no âmbito da escola favorecem a aprendizagem? Que fatores relacionados diretamente com o (a) professor(a) concorrem para que os alunos tenham aproveitamento elevado? Para minha surpresa, encontrei pesquisas realizadas, tanto no exterior como no Brasil, que permitiam responder àquelas questões fundamentais Naturalmente, essas respostas não são finais, permanentes e inerráveis. Ensinar e aprender são processos extremamente complexos; muito diferentes de fazer um cuscuz. Entretanto, acredito que estamos em terreno mais firme, quando a nossa prática é respaldada pela investigação sistemática do que quando nos orientamos por diretrizes e normas cujo fundamento repousa apenas sobre o senso comum.

Bibliografia
Weber, M. Sobre a universidade. (Trad. Lélio L. de Oliveira) São Paulo Editora Cortez, 1989.

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